sexta-feira, agosto 31, 2007

Escrever

Quase todos os escritores têm necessidade de partilhar as suas páginas. Escrevemos para que nos leiam, claro, mas no meu caso soma-se a isso o facto de ser uma incurável exibicionista. As minhas personagens são o reflexo de mim, vivem as aventuras que não me atrevo a empreender, falam, amam, e morrem por mim. Este exibicionismo chega a extremos absurdos: penso que aquilo que não conto nunca aconteceu e, ao mesmo tempo, se repito uma fantasia por várias vezes, acabo por acreditar que aconteceu. Além disso, de cada vez que conto uma história, modifico-a, e ao fim de algum tempo, acaba por já se parecer muito pouco com a versão original.
(…) Para mim, não faz sentido narrar sem um interlocutor; não escrevo para mim, nunca tive um diário, prefiro mandar uma carta à minha mãe. Ela devolve-me as cartas ao fim do ano e assim se acumulou um monte de poeirenta correspondência, num armário de minha casa. Essa correspondência diária manteve-nos unidas, apesar de sempre termos vivido separadas, e servem-me para preservar uma fresca versão dos acontecimentos. A única forma de não me perder no labirinto dos meus próprios exageros é escrever os acontecimentos do dia antes de eu própria os transformar, no entusiasmo de os relatar.
(…) Ao escrever, vou dando forma à minha vida.

Isabel Allende
in: El Pais Semanal 26/08/2007

Vem aí mais um livro de Isabel Allende: La Suma de los Dias, na versão original, que se publica em Espanha no início de Setembro. Durante anos fui uma leitora apaixonada de Allende, sempre na linha da frente mal aparecia um novo livro dela. Os últimos souberam-me a pouco, mas nunca deixei de a achar excepcional. Agora, apetece-me novamente lê-la.

quarta-feira, agosto 29, 2007

Férias


faltam três dias...

quinta-feira, agosto 23, 2007

Chuva

Alguém já reparou na chuva de divórcios que para aí anda? Ontem telefonei à minha vizinha do quarto andar, que também é a administradora do condomínio, para lhe dizer que tenho um rato em casa, que o gato caçou duas baratas e que se não me manda cá rapidamente os senhores da desratização tenho um colapso, que isto assim não pode ser e que se ela pensa que se livra dos ratos e das baratas só porque mora no último andar está muito enganada, e que... bom, ia eu embaladissima nas reclamações, praticamente à beira da histeria que isto de viver numa casa com um roedor enfiado nos canos da máquina de lavar roupa não é coisa fácil, quando ela me responde lá do outro lado, muito calma, que já não mora cá no prédio. E eu, já a descer à terra (e ao rato), a perguntar, "ai não? mas porquê?" e ela, "porque me divorciei". "Apesar de ainda só ter um ano e meio de casamento, eu e o Miguel divorciámo-nos e ele agora é que trata dessas coisas, mas está descansada que vou fazer o enorme sacrifício de lhe ligar, a pedir que se encarregue do assunto, que isso de conviver com um rato não é coisa que se aguente e nós mulheres temos de ser umas para as outras."
Um ano e meio de casamento, ainda na última reunião de condomínio estavam a dizer que iam ter filhos e pimba, divorciam-se assim, sem mais nem menos. Mais uma para a colecção, que este Verão já vai em quase uma dezena, entre amigos, conhecidos e amigos de amigos e conhecidos. Uns casados há meia dúzia de meses, outros há mais de dez anos, outros que não chegaram a casar e que decidiram que já não querem viver juntos. Todos com uma história que começou bem, casais perfeitinhos, feitos um para o outro, cheios de planos de amor eterno. E agora novamente à procura de mais um amor eterno.


PS: o rato entretanto já não mora na máquina de lavar roupa. O descarado conseguiu enganar durante vários dias os três gatos cá de casa, mas não sobreviveu às fantásticas armadilhas do Aki.

Chico

A não perder, aqui uma belissima selecção.
Bendito youtube

quarta-feira, agosto 15, 2007

Porque hoje é feriado...

quarta-feira, agosto 08, 2007

Quinze anos

Quinze anos é muito tempo. São muitas lembranças. Quase metade da vida. Descobertas a dois. O último ano do liceu, o primeiro da faculdade, amigos que foram, outros que vieram, discussões, amuos, beijos, noites com estrelas e noites com tempestades. Sobretudo muitas coisas partilhadas, referências que mais ninguém entende.Aquela fotografia na parede do quarto, tirada durante a primeira viagem a Nova Iorque. Desilusões, dias bons e dias maus. Tanta coisa guardada em quinze anos. Foram praticamente os primeiros namorados um do outro, que as paixões da escola primária não contam e a adolescência já foi também a dois, mesmo ainda antes do primeiro beijo, na viagem de finalistas do 9º ano. Depois foi o namoro, os jantares em casa dos pais, o casamento, porque sim, porque estavam apaixonados, porque os pais dela faziam questão, que a eles pouco lhes importava mais um papel assinado. E a casa nova, com os móveis comprados no Ikea de Madrid, puzzles montados, peça por peça, depois do trabalho, em interminávis noites de inverno.
Os móveis ficaram na casa que antes era dos dois. O gato também. Só ele é que saiu. Dos quinze anos só quis trazer as lembranças e, mesmo essas, tratou de as arquivar rapidamente. Voltou a ser livre. O tempo voltou a ser só seu. Acabaram-se os dias e as noites a dois, as férias planeadas a dois com meses e meses de antecedência, porque era assim que ela gostava de fazer, como tudo na vida, sempre devidamente anotado na agenda. O tempo voltou a ser só seu e já pode, finalmente, ter todas as namoradas que nunca teve, porque só a teve a ela e não sabia que lhe faltavam as outras, mais as experiências todas que nunca teve e que nenhum homem pode deixar de ter. É isso que explica aos amigos, com quem agora pode combinar copos todas as noites, sempre que lhe apetecer. Quinze anos é muito tempo, mas as lembranças estão arquivadas e há um mundo de descobertas à sua frente. Só ainda não se conseguiu livrar do estúpido vazio que lhe dá quando acorda a meio da noite e não há nada do lado esquerdo da cama. Mas até isso há-de passar.

domingo, agosto 05, 2007

Depois das férias na praia...


... uma bela tarde de Domingo em Lisboa, com a cidade como pano de fundo, no meu canto preferido do jardim. Encosto-me, confortável, baloiço um bocadinho, e penso que sou uma privilegiada, que Agosto sem praia não é tão mau como parece e que a segunda-feira não há-de ser tão difícil como a imagino.

quinta-feira, julho 19, 2007

Irmão



Há coisas que só se partilham com os irmãos. São memõrias que vêm dos anos, muitos, que passámos juntos e em que acumulámos referências que aos outros pouco ou nada dizem, parecem até incompreensíveis, patetas ou, mesmo, patéticas. Como este vídeo do YouTube, com uma musiquinha da nossa adolescência e que hoje à tarde ouvimos os dois.

quinta-feira, julho 12, 2007

Vera Cruz de Marmelar

"É uma pequena aldeia no coração do Alentejo, a poucos quilómetros de Portel. Casas brancas, a igreja no alto, um velho mosteiro em ruinas, uma belissima vista sobre a planície alentejana. Como tantas outras na zona, tem uma população envelhecida e parece que se perdeu no tempo. E, contudo, tem uma história muito curiosa. A igreja guarda uma Relíquia que todos os anos sai pelas ruas em procissão: o Santo Lenho. Acreditam os fieis que se trata de um pequeno pedaço da cruz de Cristo. E que faz milagres: cura sobretudo os males do espírito. Por isso abundam por lá histórias de endemoinhados, homens,mulheres, crianças, até, que chegaram doentes e saíram curados, depois de verdadeiros exorcismos feiros na igreja.
Também há outras histórias, essas nas povoações à volta, sobre as pessoas de Vera Cruz e Marmelar, que têm, diz-se, uma feitio especial e uma maneira, muito própria, de encarar a vida."

Este post foi escrito já há uns anos, num blog que entretanto deixei de lado, porque só tinha tempo para este. O blog foi esquecido, mas, até hoje, continuam a aparecer comentários na caixa. Não resisto a copiá-los para aqui, para a caixa de comentários, porque não gostaria de os perder.

Gostaria, isso sim, que além dos comentários, me enviassem mais informação sobre Vera Cruz de Marmelar, que, não duvido, hoje é apenas mais uma aldeia do meu querido Alentejo, mas tem, no seu passado, uma história fascinante.

Férias. Finalmente.



Passaram dois meses. Mais, até. O livro que ando a ler já não é o que está ali ao lado, depois dele já passaram mais dois ou três e aquele nem o acabei, coisa que raramente me acontece. Este blog nunca foi um diário, mas hoje é uma excepção. Hoje é para explicar que desapareci, mas continuo por aqui. Que de vez em quando passo um a um os links dos meus blogs amigos, mas que tem sido muito de vez em quando mesmo.
Não tenho tempo. Cheira a desculpa rasca, mas não é. Esta profissão maluca que escolhi tira-me o tempo para as minhas coisas. Gosto dela, não me devia queixar. Tenho um emprego, um salário no fim do mês, as contas em ordem, uma casa linda e maravilhosa. E no entanto, às vezes apetece-me mandar tudo para o ar só para poder recuperar essa preciosidade que é o meu tempo. Só para não ter de trabalhar dez horas por dia, entrar numa sala de manhã e sair à tarde já com o sol a desaparecer.
Mas não posso. E se calhar, no fundo não quero.
Daqui a dois dias entro de férias. Finalmente.

Momento piegas: obrigada por terem continuado a espreitar por aqui de vez em quando, apesar dos dois meses de ausência...

domingo, abril 29, 2007

Viver de amores

Não morreu de amores, claro, até porque disso, já se sabe, ninguém morre, mas ganhou um brilho diferente nos olhos. Qualquer coisa muito próxima da loucura, que o faz, de repente, no meio de uma qualquer inócua conversa sobre o tempo ou sobre os últimos lances do Cristiano Ronaldo, falar sobre o magnífico cabelo da Sandra. Ou sobre os olhos azuis em que costumava perder-se. Ou sobre aqule jeito dela, de lhe encostar a cabeça no ombro quando iam ao cinema. Ao início, os amigos fingiam que não reparavam e continuavam apressadamente a conversa, saltando para os feitos do Mourinho ou para os azares do Benfica. Agora, delicadamente, lembram-se que têm de ir à casa de banho, ou que estão atrasados para um jantar em casa da sogra. Ou então vão buscar mais um copo e ficam à conversa com outro amigo qualquer. Ele não se chateia. Nem liga. Olha à volta, à procura de mais uma cara conhecida, e lá vai, porque há sempre muito o que contar sobre a Sandra. Muitas coisas boas para lembrar e para voltar a contar, até à exaustão, a quem ainda tenha coragem para ouvir.

O Bruno sempre foi diferente. Vagueava algures, num mundo onde poucos conseguiam chegar, mas não havia quem não gostasse dele no grupo que naquele ano entrou para a universidade. A sua popularidade era inversamente proporcional à da Sandra, que nunca passava despercebida em sítio nenhum, mas que colecionava antipatias. Entre as mulheres, porque sim, entre os homens porque o permanente ar de superioridade deitava por terra mesmo os egos mais fortes e nenhum estava para a aturar. Só o Bruno. E, por ela, o Bruno foi até ao fim do mundo. Mudou de cidade. Mudou de emprego. Casou-se de fato e gravata e deixou de ver os amigos, mesmo quando algum fazia os 300 quilómetros que os separavam. Nunca tinha tempo. Todo o seu tempo era dela.

E, depois, não se aguentou com o choque. Não conseguiu descobrir como havia de continuar a viver quando ela lhe disse que já não lhe apetecia, sem quê nem porquê, só porque não. Não soube o que fazer, mas teve de se desenrascar, porque a vida continuava, mesmo sem a ele lhe apetecer. E só encontrou uma saída: fingir que ela tinha morrido e, com ela, tudo o que de mau lhe tinha acontecido a ele nos últimos anos.

quinta-feira, abril 12, 2007

Sabedoria de taxista

Depois dos quarenta é sempre a correr. Nem damos por eles. É como se nos encostássemos a uma esquina, de jornal na mão, e o vento fosse virando as páginas e as páginas fossem os anos e o vento fosse tão forte que não o conseguíssemos parar. É sempre a correr. Por isso mais vale aproveitá-lo. E não pense que está muito longe, que ainda é muito jovem, que falta muito para lá chegar, porque um dia destes acorda e pronto, já está.

terça-feira, abril 03, 2007

Jardim

As maravilhas foram as primeiras. Há uma que já abriu completamente, pétalas laranja a brilhar no branco da parede, no verde da relva. Há mais duas ou três à espera do sol, para se juntarem aos lírios e aos narcisos amarelos e perfumados. A hortencia, no meio do relvado, é uma pequena ilha em cor-de-rosa e a roseira lá vai, em direcção ao céu, os primeiros botões a despontarem. Ao lado da nabiça e das tomateiras-cereja, arrumadinhas no dois metros quadrados reservados à horta, onde já está a salsa, o mangericão, a hortelã pimenta, a hortelã da ribeira e a hortelã só hortelã, que deixam os gatos malucos com o cheiro, vá-se lá saber porquê. A videira que veio do Alentejo parece ter uma folha nova todos os dias e o marmeleiro, a árvore plantada pelo homem cá de casa parece decidida a ultrapassar o muro do vizinho, de tal maneira lá vai, ramos direitos, cheios de folhas, numa corrida contra o tempo.
Só as tulipas me andam a trocar as voltas, mas também elas crescem um bocadinho todos os dias. Agora têm companhia nova, acabada de chegar do Jardim Botânico da Ajuda: uma sempre noiva e um rododendro, compradas, mais uma erva de são roberto e uma torga, roubadas, que as flores não se pedem, levam-se, apesar do olhar de pânico do homem da casa, indignado com o assalto, não fosse algum botânico descobrir e obrigar-se a esvaziar os bolsos.
São vinte, talvez trinta metros quadrados, no coração da cidade, a dois passos de um outro jardim, muito maior, onde os lisboetas se esquecem de ir passear. São os meus metros quadrados, os meus hectares de terra na varanda, a minha pequena herdade onde tudo cresce, nem eu sei bem como e onde, de cada vez que lá vou, cresce também a minha paz.
Entrem. Estão todos convidados.

domingo, março 25, 2007

Amanhã

O pior é quando a coisa escapa ao controlo. Começa com um xanax, um prozac de manhã, outro ao almoço, os meses vão passando e transformam-se em anos, depois já é preciso também tomar qualquer coisa para dormir melhor e às tantas a oferta torna-se irresistível e o caminho, laboriosamente aberto, já não tem volta.
A partir daí, começa o longo rol de mentiras. Porque é preciso explicar o nariz sempre a pingar numa eterna crise de alergias primaveris, é preciso justificar porque é que foi preciso ir à conta conjunta que só é suposto usar para pagar as compras lá de casa, é preciso arranjar uma boa desculpa para as súbitas saídas nocturnas para comprar cigarros que afinal demoram mais de duas horas.
Depois, há um dia em que se lhe acende uma luz na cabeça, depois de um desmaio no chão da casa de banho do qual acordou com o miúdo a chorar ao lado porque não consegue tirar as peças do lego que enfiou na sanita.
Acende-se uma luz e vê o que lhe anda a escapar há muito tempo: o filho que vai para a cama sem tomar banho, o nariz num estado vergonhoso, a pela a envelhecer precocemente, o cabelo numa lástima. E vê também que a coisa lhe escapou ao controlo. Que a força que sempre pensou ter para parar quando quisesse, afinal era pura ilusão. Não a tem. E não consegue parar.
Pega no telefone e liga-lhe mais uma vez. Arranjas-me para logo à noite? Ok, passo por tua casa. Amanhã paro. Amanhã é outro dia.

domingo, fevereiro 25, 2007

SMS

"Que é que fazes hoje à noite? queres ir ao cinema?". Uma SMS no telemóvel e um nome recuperado da memória, juntamente com um par de olhos verdes que achava que nunca conseguiria esquecer. Nos sonhos era assim, desde menina: olhos verdes, cabelos pretos, um sorriso lindo de morrer e uma paixão assolapada que havia de durar o resto da vida. Os olhos eram verdes, mas o cabelo era loiro e o sorriso às vezes era longe, como se só o corpo estivesse ali e o cérebro andasse noutro sítio qualquer. Devia ter desconfiado logo de início que a coisa não batia certa com o sonho, mas a paixão assolapada não deixou e a descoberta só a fez meses depois, quando a porta lá de casa se fechou e os olhos verdes, um bocadinho aguados com umas belas lágrimas de crocodilo, desapareceram de cena.
Voltaram hoje, atrelados a uma SMS no ecrã do telemóvel, e, surpreendentemente, não fizeram mossa. Nada. Zero. Também não lhe tremeu a mão quando marcou o número e lhe ligou de volta, que aquilo merecia mais do que uma mensagem escrita.

Estou bem, claro, e tu, também? que tens feito, nestes anos todos? ainda bem. O quê? És pai? meu Deus! nunca imaginei!! E também te rendeste ao casamento, que sempre juraste que não era para ti? É pena... As desilusões são sempre muito tristes. As perdas também. Mas um divórcio não é o fim do mundo, não é? Claro que te sentes sozinho, é normal, mas qualquer dia isso passa. Bem sei que pareço a minha mãe, mas o que mais interessa é ter saúde. Ups! Não imaginava, desculpa... E quando serás operado? Vai correr bem, tenho a certeza. Não desanimes. E qualquer coisa liga-me, está bem? Tenho pena, mas não posso mesmo ir ao cinema contigo. Fica para outro dia. Vai dando notícias, está bem?

Não tremeu quando desligou o telefone, mas passou os dias seguintes a pensar no homem dos olhos verdes que costumava ter uma agenda cheia de telefones de miúdas, que não passava uma noite sozinho, que queria ser rico e feliz e que agora estava divorciado, com um filho que só via ao fim de semana e uma operação ao coração daí a um mês e meio. A vida tem esta mania de nos contrariar os planos e de nos apresentar a factura quando menos a esperamos...

domingo, janeiro 07, 2007

Decisão de ano novo

Saiu de casa com a gaiola do pássaro, o cabide almofadado que parecia um busto sem cabeça e que tinha herdado da avó, e a velha mochila do ginásio com os CD da Elis e da Ella. A mala com a roupa ficou, havia de a vir buscar depois se lhe desse para isso. Ou talvez se metesse nos saldos e investisse num guarda-roupa novo. O pássaro também ficou, mas com a janela da cozinha aberta, portanto já se devia ter juntado aos outros que se abrigam nas árvores da Gulbenkian. Também merecia uma vida nova. Tinha sido essa a sua decisão de ano novo, enquanto olhava para o fogo de artifício que vinha da Praça do Comércio: uma vida nova. E o primeiro dia do ano era tão bom como outro qualquer para a começar. Não sabia para onde ia, mas depois se preocuparia com isso.
Passou as obras do Metro no Saldanha, desceu a Fontes Pereira de Melo até ao Marquês e daí até à Baixa e até ao rio. Sempre com a gaiola (aberta) e o cabide nas mãos. A gaiola, onde nunca mais viveria nenhum pássaro, serviria para lhe lembrar o quanto lhe tinha custado a prisão em que vivera nos últimos quinze anos. O cabide era a ligação ao passado e à avó, que viveu numa prisão a vida toda.
Nessa noite o marido chegaria a casa e não teria o jantar na mesa, como de costume. Não se sentariam os dois no sofá da sala a ouvir os interminaveis concursos da televisão. Não iriam para a cama e não desligariam o candeeiro da mesa de cabeceira sem sequer se ouvir um simples boa noite. Nessa noite, não sabia sequer onde dormiria, mas sabia que a sua vida seria diferente.
Sentou-se na estação, de frente para o Tejo e a olhar sem ver os barcos que iam e vinham do Barreiro. Voltou a lembrar-se da caixa que no dia anterior descobrira debaixo do banco da frente do carro. O laço dourado o papel de embrulho da Armani, o cartão onde uma letra de mulher escrevera "para o amor da minha vida, e para que este seja o ano em que finalmente ficaremos juntos", deixando em baixo uma ridícula marca de baton de uns lábios pintados de vermelho vivo.
Verificou cuidadosamente a carteira, com os cartões de crédito gold que o marido lhe oferecera nos últimos anos e comprou um bilhete de barco. A primeira de muitas compras. Como toda a gente sabe, a vingança é um prato que se serve frio.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Dilema

O Natal tem destas coisas. Ele são almoços, ele são jantares, mais as festas de comemoração da época, e depois dá nisto. Muito álcool, talvez. Ou se calhar é só aquela coisa de sair até tarde e de deixar a cara metade em casa, porque o jantar é só com o grupo da empresa. O que é certo é que lá acabámos a noite no Tóquio, com o pessoal todo descontraído à conta de imperiais e Whisky marado. E ele, sempre tão caladinho, sempre com ar de chefe-que-não-parte-um-prato, de repente começa a dançar que nem um doido, coladinho à mini-saia da secretária do director, todo mãos por todo o lado, indiferente aos sorrisinhos de toda a gente. Aos meus também, claro, que há coisas que a gente não consegue evitar. Mas o riso foi-se quando me lembrei que o tipo é namorado de uma das minhas melhores amigas, que no dia seguinte o jantar até era com ela e mais o grupinho que ainda resta dos tempos da faculdade, e que lá ia ter que ouvir como ele é maravilhoso e fantástico e o melhor gajo do mundo. Por isso fechei os olhos. E não vi quando as mãos lhe escorreram para o decote da secretária, não vi quando se sentaram os dois no sofá do fundo, nem vi quando saíram junto e apanharam o mesmo táxi.
Não vi, mas agora já não sei se não devia ter visto. No dia seguinte fui jantar com a Joana e não contei nada, porque não havia nada para contar, porque afinal não tinha visto nada. Mas não sei é como é que há-de ser da próxima vez que ele me aparecer à frente. Porque me vai apetecer tirar-lhe da cara o ar de chefe-que-não-parte-um-prato, mas sei que o melhor é não fazer nada. Porque, já dizia a minha avó, entre marido e mulher não se mete a colher, e porque era capaz de apostar que ela não havia de acreditar em mim, que cairia que nem uma patinha na versão dele da noite e que perdia mais uma amiga das poucas que ainda me restam dos tempos da faculdade.