sexta-feira, setembro 30, 2005

Barcelona

Já não sei onde o vi pela primeira vez. Não sei se foi a descer as Ramblas, se foi no bairro gótico, ou no passeig de Gràcia, a namorar alguma das casas de Gaudi. Não sei, porque ele e Barcelona são um apenas e deixaram de existir um sem o outro. Nem Gaudi, nem Picasso, nem Miró, de Barcelona trouxe-o só a ele e a este amor que me fez aprender catalão, porque a língua nórdica que ele falava nunca me entrou no ouvido e o catalão era só nosso, dos dois, uma conquista nossa.

Durante dois anos, Barcelona foi o meu mundo e a cidade mais bela do mundo, e nem me custou deixá-la quando foi preciso mudar novamente de país e o sol foi substituído por um dia em que a noite chegava às três da tarde. Não fazia mal, porque estávamos juntos e o sol éramos nós. Não importava a família dele, com quem tínhamos de dividir a casa, não importava o frio, as conversas que não podia ter por não conseguir aprender a língua, os amigos que ficaram em Portugal, o mar que me fazia tanta falta. Nada importava porque nos tínhamos um ao outro, continuávamos a dizer amo-te em catalão e tínhamos a vida toda pela frente.

E um dia, quase sem darmos por isso, tínhamos também um filho. O nosso mundo subitamente dividido por dois, as contas para pagar no fim do mês, as noitadas em claro, as fraldas que era preciso mudar, e Barcelona lá tão longe, Portugal mais longe ainda, e um amor que não aguentou o embate do lado prático das nossas existências.

A língua dele não sabe dizer saudade, mas é nele que penso todos os dias, quando acordo e vejo o Tejo aqui da minha janela. Um dia levo o meu filho a Barcelona e talvez o encontre de novo, nas Ramblas, ou no bairro gótico, ou no passeig de Gràcia, ou no terraço de la Pedrera.

quinta-feira, setembro 29, 2005

Íssima

Tenho um namorado novo!!! Estou excitadíssima, quer dizer, entusiasmadíssima, a menina não comece já a pensar outras coisa que isto ainda está muito no início. É educadíssimo, sabe?, civilizadíssimo, paga sempre as contas e escolhe restaurantes elegantíssimos. E está sempre a telefonar-me, a querer saber onde estou, o que estou a fazer, sempre a convidar-me para sair, a querer conhecer os pais, as amigas. Tita, a menina não imagina, ele é o máximo, sabe?! Estou entusiasmadíssima como nunca e há três dias que não penso noutra coisa, desde que demos o primeiro beijo quando ele me trouxe a casa depois do jantar em cada da tia Xixá. Nem consigo dormir, veja só. E eu que andava caidinha pelo Jojó, que por acaso é giríssimo, olhos azuis e alto, e assim, e nem reparava neste, apesar de ele andar sempre colado a mim e a telefonar-me. Mas a vida é assim mesmo, não é? Cheia de mistérios, e depois daquele beijo achei que o melhor era aproveitar, que afinal o Jojó está a separar-se e depois se calhar ainda voltava para a ex e para as crianças, que é o que eles fazem sempre. Decidi aproveitar, apesar de lá no fundo até nem me sentir assim muito atraída por ele, mas estou sempre a apostar no cavado errado, quer dizer, no homem errado, que horror, nem sei como é que me saiu uma coisa destas. Enfim, estou apaixonadíssima, que dizer, ele está mais apaixonado do que eu, mas pronto, decidi aproveitar. O problema é que agora nem durmo, a pensar nele, mas, sobretudo, a pensar em todos os homens que ainda não conheci, e no Jojó, que ainda não voltou para a mulher e no futuro que eu não sei como é que vai ser, mas onde pode sempre muito bem aparecer outro que seja mais giro e mais interessante e por quem eu me apaixone ainda mais. Olhe, Tita, estou em pânico, sabe?! Acho que vou ter de retomar o Prozac que andei a tomar quando o Titolas decidiu acabar comigo e me trocou por aquela pirosa da Maria Luísa. Acho que ainda tenho uma caixa lá em casa...

sábado, setembro 24, 2005

De tanto bater, o meu coração parou






Há dias em que o ecran do computador é apenas um enorme espaço branco e vazio, à espera que as histórias aconteçam. Como o homem que quer ser pianista e acaba sempre sentado na plateia.







(Che Caribe)

segunda-feira, setembro 19, 2005

Dez horas

Conheceram-se num avião, a muitos mil pés de altitude, a meio caminho de uma viagem desde o outro lado do mundo, sentados nos lugares da económica, pernas encolhidas, hospedeiras de olhar frio e superior, comida deslavada e um vizinho da frente que ressonou durante dez horas seguidas. Não teria sido melhor se tivessem viajado em primeira classe e lhes tivessem servido lagosta com champanhe, porque dez horas foram suficientes para saberem tudo um sobre o outro. Se calhar porque a altitude lhes destravou o cérebro, fez baixar as defesas e a vida ficava lá em baixo, demasiado distante para se lembrarem dela. Se calhar porque, sem o saberem, tinham esperado a vida toda por aquela viagem, sempre a contrariarem as teorias parvas de que algures por aí andaria a sua outra metade.

Dez horas que mudaram o mundo. Os seus mundos. Dez horas em que foram capazes de rir, de falar, de ouvir e de, simplesmente, ficar em silêncio, as núvens lá em baixo a esconder o mar, as estrelas ali à mão e, depois, o sol a nascer num festival de cores reflectidas nos olhos, mãos que nunca se tocaram porque não era preciso.

No fim, não houve despedidas. Havia a namorada à espera no átrio das chegadas, o marido e os filhos lá fora, no carro, a vida, cá em baixo, para continuar a levar, como sempre, como todos os dias. Não houve trocas de números de telefone nem promessas de novos encontros.

terça-feira, setembro 13, 2005

Férias

segunda-feira, setembro 12, 2005

Magnum

Deixei-me ficar, parada na porta, com o gelado a derreter na mão, gotas de açúcar a escorrerem, lágrimas a caírem-me pela cara, incapaz de perceber como é que aquilo me tinha escapado e como é que o Henrique tinha sido capaz de esconder que andava com a Mariana. Deixei-me ficar à entrada do escritório dele, onde tinha ido fazer-lhe uma surpresa e levar-lhe um Magnum, como costumava fazer antes, quando ele ainda não tinha sido promovido e ainda tinhamos tempo para namorar. Deixei-me ficar, incapaz de dizer fosse o que fosse, a vê-lo a passar-lhe as mãos pelos cabelos, a dizer-lhe qualquer coisa que não sei o quê, se calhar o mesmo que à noite me costumava dizer a mim, que sentia a minha falta, que eu era única para ele.
Depois desapareci dali. E já não voltei para o trabalho, porque não sei como hei-de enfrentar o João que de certeza há muito sabia que o meu marido andava a dormir com a mulher dele. Não voltei, mas sei que um dia destes tenho que voltar. Porque a vida continua e porque tenho de agradecer ao João a atenção com que me tratou nos últimos tempos. A antecipar, muito provavelmente, aquilo que agora estou a sentir, mas com a delicadeza de me deixar descobrir sozinha.
E agora que descobri, a única coisa que me ocorre é que o amor pode ser como aquele infantil e estúpido gelado.

domingo, setembro 04, 2005

Dúvida existencial

Ando a pensar se lhe digo ou não. Se lhe conto e lhe acabo com o sorriso com que chega ao trabalho todos os dias ou se continuo assim, a fingir que nada se passou, que o marido dela nunca dormiu com a minha mulher, que deixei a Mariana porque o amor acabou e não porque ela me traiu. Tenho pensado nisto todos os dias quando a encontro junto à máquina do café, quando almoçamos juntos ou quando vamos para uma daquelas intermináveis reuniões de trabalho com algum cliente e onde tenho cada vez mais dificuldades em me concentrar. Ela já deve ter estranhado eu nunca mais ter aceite os convites para jantares a quatro ou para lá ir a casa ver o futebol como fazíamos fim-de-semana sim, fim-de-semana não, mas nunca me perguntou nada. E eu nunca lhe expliquei. Nunca lhe disse que só me apetece partir a cara ao homem da vida dela, aquele que ao fim de três meses de casados passou a dormir também com a minha mulher. Não o fiz, mas ando a pensar seriamente nisso. E, no entanto, falta-me a coragem. Talvez tenham de ser eles a resolver, sozinhos, a vida deles. Como eu e a Mariana, que, numa noite de confissões, desfizemos o que tínhamos construído nos últimos dez anos. A mim aliviou-me saber a verdade, mesmo sendo uma verdade que eu já adivinhava e que no fundo não queria ouvir. E se calhar com ela também é assim. Se calhar custa-lhe menos conviver com a mentira, porque há verdades que doem muito mais, e esta é uma delas. É por isso que ando nisto, há tanto tempo, a pensar se lhe hei-de contar ou não.