domingo, fevereiro 27, 2005

Mãe

Os dias são uma caixa cheia de surpresas. Cartas fechadas, dizia a minha avó,que não sabia que hoje já ninguém escreve a ninguém e que os correios estão a ir à falência. Cartas fechadas como os casamentos. Como os namoros. Cartas fechadas, diz a minha mãe quando choro no seu colo os dias sem cor. São cartas fechadas mas podem ter o arco-íris lá dentro, diz ela. E eu acredito.

Sugestão musical

Everything and Nothing
David Sylvian



Posted by Hello

Lembram-se deste senhor? Lembram-se dos Japan? Este disco é uma colectânea de canções que vêm já dos anos 80. Muito bom. Um bocadinho a dar para o nostálgico, mas realmente muito bom. Bem sei que o álbum não é novo, mas hoje apeteceu-me. Traz-me boas lembranças.

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Feliz

Tenho bilhetes para a Ópera do Malandro. Chegaram hoje à minha secretária, quando eu já desesperava e o espectáculo estava mais do que esgotado. Domingo estarei rouca de tanto cantarolar! Estou feliz, pronto! Iupi!!!

Dentro do meu novo espírito-de-mulher-nova-e-despreocupada-para-não-ter-rugas, estou a aprender a ficar muito feliz com estas pequenas coisas. Outro exemplo? Hoje conheci Luís Sepulveda, que por acaso é um dos meus escritores favoritos e é tal e qual como eu imaginava que ele seria. Fiquei ainda mais fã e voltei para casa com um livro autografado (e um sorriso um bocadinho aparvalhado, mas isso não interessa).

E há mais: dentro de exactamente dez dias estarei a voar para Paris. Isso mesmo, Paris de France, nem mais. Terei dois dias inteirinhos só para mim, para deambular à vontade pela cidade, por isso aceitam-se sugestões de roteiros.

domingo, fevereiro 20, 2005

Anjo

Fazia-lhe lembrar um anjo de Botticelli. Um daqueles que vira inúmeras vezes nos anos passados no Vaticano a dissecar a Bíblia, mergulhado em intermináveis estudos teológicos. Por isso, quando a viu, só lhe passou pela cabeça que era um anjo. Um anjo de olhos azuis, caracóis loiros e, pior, um anjo no feminino. Porque, sabe-o agora, os anjos também têm sexo.

É em tudo isso que pensa enquanto percorre a passadeira vermelha da igreja, fato cinzento, gravata azul, olhos no chão, em direcção ao padre e à comunhão. Pensa no seu anjo loiro, que o fez desistir de tudo, esquecer os estudos no Vaticano, a carreira de sacerdote à sua frente, talvez chegasse a Bispo, dizia-lhe o seu confessor. Talvez, dizia para si próprio, mas quando fechava os olhos à noite, na solidão da cama de eterno solteiro porque a isso o obrigavam os votos e as juras do dia em que foi ordenado, quando fechava os olhos, era nela que pensava. Loira, de olhos cor do céu do verão, a olhar para ele e a pedir-lhe que nunca a deixasse. Que fugissem os dois. Que fizessem um filho e vivessem felizes para sempre.

Dois meses bastaram para ter a certeza de que estava apaixonado, que o seu amor por ela era maior do que tudo no mundo. Que graças a ele tudo seria capaz de ultrapassar. Por isso, pouco a pouco, foi-se deixando levar. E, de repente, já não importavam as velhas beatas à espera da missa da manhã à porta da igreja enquanto ele, o padre, viajava para o Algarve onde passaria o dia na praia. Já não importavam as velhas que cochichavam quando passava, e levantavam a voz para dizer que era tudo uma pouca-vergonha e que o mundo estava perdido e que ele dormia com ela.

Nem era verdade. Dormiram juntos pela primeira vez no dia em que presidiu à sua última missa e anunciou às velhas beatas que ia deixar de ser padre, que já tinha autorização da igreja e que a sua decisão era irreversível. Foi então, já livre dos compromissos espirituais, que se entregou à sua primeira noite de amor, com a ternura desajeitada do quarentão ainda virgem que a única certeza que tem é que está apaixonado como um miúdo de quinze.

Dois meses de paixão, recorda-se. Sessenta dias e sessenta noites em que mal saíram de casa, fizeram uma filha e ofereceram um ao outro juras de amor eterno. Onde foi que tudo começou a quebrar, pergunta-se agora, à medida que percorre o corredor da igreja. Não sabe. Talvez quando ela, o seu anjo, começou a lembrar-se que tinha apenas 18 anos, que preferia sair à noite a ficar em casa, à lareira a ler os clássicos e a ouvir ópera. Ou talvez quando ele próprio começou a ter saudades da sua vida de antigamente, a única que aprendera a viver, a única que se via a viver até ao fim dos seus dias.

Hoje vai comungar pela primeira vez. A igreja, esse monstro de bondade e de ódio, acedeu a conceder-lhe o perdão e, por isso, deixou oficialmente de ser um pecador. Porque é que, então, não consegue sentir-se feliz? Porque é que, na sua cabeça, continuam a misturar-se as lembranças dos dias passados na praia como dois namorados, dos olhos de anjo a pedirem-lhe que deixe tudo por ela, das noites de paixão e, por fim, da voz que lhe atira à cara os seus 40 anos e o seu passado do qual nunca conseguiu realmente libertar-se? Porque, sabe-o agora, além de terem sexo, os anjos também podem ser muito cruéis e o amor pode apagar-se, subitamente, numa qualquer passadeira vermelha.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

A carta

Um senhor da política, que aparece muitas vezes na televisão mandou-me uma carta. Fiquei muito lisonjeada, claro está. Não é todos os dias que a nossa caixa do correio recebe uma visita tão ilustre, não é? E logo um primeiro ministro, valha-me Deus! Anda toda a gente a dizer que não ocupará o cargo durante muito mais tempo, mas é sabido que essas pessoas das sondagens são todos uns aldrabões, sempre a inventar mentiras e cabalas e coisas do género. E este senhor, coitadinho, sensibilizou-me pronto.

Fiquei comovida. Então não é que ele tem a coragem de dizer que tem defeitos? Sim, defeitos, como todos os seres humanos. Não é qualquer um que chega a uma conclusão assim tão profunda, não é? O dr. Santana Lopes, que assina a minha carta com uma letra miudinha, muito perfeitinha, e que tem a coragem de admitir os seus defeitos, escreve também que tem sido muito mal tratado. Fiquei sem saber exactamente por quem, porque ele não cita nomes. Fala-nos dos que o querem afastar, poderosos que querem que tudo fique na mesma, que o tratam mal e ele e a mim e o senhor lá há-de saber, não é? Bom confesso que fiquei um bocadinho confundida, porque me parece que, na verdade, o que a maioria do pessoal quer é que não fique tudo na mesma.

Bom, seja como for, estou comovida com a missiva. Mais, estou estarrecida. Porque ainda me parecia que o dr. Santana Lopes não fosse tão imbecil. Não que me passasse pela cabeça votar nele, mas ainda tinha cá para mim que no meio da trapalhada que foram os seus quatro meses de Governo, o homem conservava alguns neurónios activos. Mas não. E esta carta, dirigida a quem "não costuma votar", é uma prova irrefutável disso.

Sim, dr. Santana Lopes, irei votar, mas para que as possibilidades que vocência ainda tem de ganhar alguma coisa fiquem o mais reduzidas possível, na linha de que voto a voto mais longe ficará de São Bento.

Vou ali vomitar e já volto

(p.s.: este blog abriu uma excepção para falar de política. Uma carta tão cretina justifica o pequeno sacrifício.)

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

São Valentim


Posted by Hello

Sim, eu assumo. De lagriminha no canto do olho e nariz vermelho sempre que vejo o avião a levantar voo, admito: este é um dos meus filmes preferidos. É lamechas, pois, e então? algum prolema? oras! Uma rapariga tem de ter a coragem de assumir estas coisas. Vocês viram bem aquele homem? É ou não o homem com que qualquer mulher sonha? Qual bredepit, qual jorgeclunei? (bem, o George não vai nada mal, mas adiante...) A verdade é que já não se fazem homens assim, de cigarro no canto dos lábios, com aquele ar impenetrável, a segurança de quem consegue resolver todos os nossos problemas e, ao mesmo tempo, uma fragilidade de miudo e um sorriso de fazer cair o coração aos pés.

Apesar de achar que o dia dos namorados é uma pirosice do pior, cá fica a minha homenagem aos parzinhos de apaixonados, aos apaixonados sem parzinho e aos parzinhos em geral, apaixonados ou nem por isso.


Posted by Hello

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Melhores amigas

A minha primeira melhor amiga passava comigo todas as férias de Verão, emprestava-me os seus melhores sapatos, e gastava horas a tentar esticar os meus caracois rebeldes depois de um dia de mar, para à noite irmos as duas espreitar os ingleses que inundavam a Praia da Rocha aos magotes. Foi ela que aturou o meu primeiro desaire amoroso, com um moreno de olhos verdes e dez anos de idade, que tinha uma bicicleta vermelha e me deixava rosas amarelas no guiador e bilhetinhos românticos cheios de erros de ortografia. Foi ela que, anos mais tarde, me emprestou dinheiro para pagar a renda quando decidi ser uma mulher independente e ir viver sózinha. Foi ela que me escreveu dezenas de cartas que ainda guardo e que encurtavam a distância entre Lisboa e o Algarve, nessa altura ainda a muitas horas de viagem. Foi a minha primeira melhor amiga e muito provavelmente a única, porque a inocência da amizade também se perde e a factura do deve e do haver, mesmo sem querermos, fica mais pesada à medida que os anos passam.

A minha primeira melhor amiga seguiu caminhos diferentes dos meus. Casou com um imbecil que acha que Ceuta fica na América e afundou os seus sonhos numa vida normal de esposa e mãe, que acorda de madrugada para ir pôr a filha ao infantário e deixar pronto o almoço do marido. Esqueceu-se dos livros que gostava de ler e tem uma estante na sala cheia de DVD com filmes de acção, os mesmos que antes detestava. Endividou-se até mais não poder para comprar a casa e o carro e desistiu de viajar porque o orçamento só chega para ir jantar fora uma vez por mês. Às vezes telefonamo-nos. Em 95% do tempo ela fala-me das gracinhas da filha, nos restantes 5% arrisca um ou outro comentário sobre o marido, em voz baixa que ele está na sala, de cerveja numa mão e comando na outra. Às vezes temos saudades uma da outra e tiramos uma noite só para nós, mas a Praia da Rocha já não tem o mesmo brilho de outros tempos, os rapazinhos ingleses deram lugar a turistas de terceira idade gordos e avermelhados e os bares onde antes bebiamos cervejas à borla há muito que fecharam as portas. Mesmo assim lá vamos, embebedar-nos as duas. E então, em 5% do tempo ela fala das gracinhas da filha e nos outros 95% recorda os namorados que teve, todos lindos e maravilhosos, bons partidos, inteligentes e cultos, fartinhos de saber onde fica Ceuta. No dia seguinte despedimo-nos e ela jura-me que é feliz.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Comunicado

Quando fiz trinta anos tomei a firme decisão de não gastar o meu tempo com pessoas que usem o pronome pessoal "eu" no início de (quase) todas as frases. Cansam-me e provocam-me dores de cabeça e uma rapariga tem de zelar pela sua integridade fisica, não é?

segunda-feira, fevereiro 07, 2005

Momentos

É tão ténue a linha que separa o presente do passado...


Posted by Hello

domingo, fevereiro 06, 2005

Sinais

Numa semana, visita a duas cidades que num momento da história ainda recente foram devastadas pela Guerra: Dubrovnik e Berlim. As marcas parecem ter desaparecido por completo, mas depois, quando olhamos bem, estão lá, vivas, latentes, como feridas que sararam mas continuam a doer. Não, não é exagero. Em ambas as cidades, cada uma à sua dimensão, há sinais mais ou menos disfarçados de conflitos estúpidos, irracionais como o são todas as guerras, que tudo deitaram por terra.

Em DUBROVNIK, a pérola do Adriático, a cidade velha foi toda reconstruída com apoios da Unesco. Está linda como dantes, mas de uma beleza limpa, branca, quase fantasmagórica, de tão novos que são os edifícios antigos. As pessoas caminham pelas ruas, no dia-a-dia habitual, mas as lembranças estão lá. Um homem que parece saído de um filme de Kusturika recebe os turistas com a maior das simpatias mas quando lhe perguntamos pelos tempos da guerra lança-se num discurso infindável e perturbado sobre o ano em que a sua cidade foi bombardeada e ele, com pouco mais de vinte anos, se viu mergulhado num inferno onde tinha de matar para não ser morto.



Posted by Hello

Em BERLIM, a belíssima capital alemã, as obras continuam, meio século depois do fim da guerra. Também aqui todos os edifícios foram reconstruídos. À escala alemã, os velhos monumentos voltaram à vida, milimetricamente iguais, como se nunca tivessem sido bomardeados. Das Portas de Bradenburg a guerra deixou apenas as estátuas dos cavalos que lá de cima espreitavam Berlim Leste, mas o que vemos agora são as velhas portas da cidade, lindas e cheias de simbolismo. Uma mulher ainda jovem conta que das visitas de estudo das escolas constam obrigatórias visitas aos velhos campos de concentração à volta da cidade. Porque há memórias que não podem ser apagadas, tragédias que não podem ser esquecidas. Nem repetir-se...


Posted by Hello

Apesar da beleza de ambas as cidades, não há como ficar indiferente. A estupidez do Homem não tem limites. Vale-nos a nossa capacidade de sobrevivência.