A duas vozes
Do singular para o plural. A pasta de dentes apertada ao meio e não em baixo, as cuecas esquecidas no chão da casa de banho, os pelos da barba que entopem o lavatório, a cozinha virada do avesso só por causa de uma sopa e de uns ovos mexidos. E mais. O meu cão e o gato dele que não se podem ver um ao outro sem destruir os bibelôts da estante, os cd meticulosamente arrumados por ordem alfabética que se perdem pela casa toda. Ou, o grande terror, as frases que se instalam, amor, como foi o teu dia no escritório? os gestos sempre iguais, o sexo ao fim-de-semana porque nos outros dias estamos demasiado cansados.
Do singular para o plural, porque sim, porque namoramos há demasiado tempo, porque ao fim e ao cabo ele já dorme cá em casa todas as noites e por isso não faz sentido pagar duas rendas.
É normal, é racional, mas tem o peso daquilo que é suposto ser definitivo. Tem o peso das coisas a dois. Dos pequenos almoços a dois, dos jornais na esplanada a dois, dos almoços em casa da sogra... a dois. E das idas a dois ao veterinário, com o cão e com o gato que se atacaram um ao outro pouco antes de terem destruído para sempre a estante do escritório.
Ao mesmo tempo, o definitivo é bom. O amor é bom. As noites são melhores. E, afinal, como diz a minha mãe, é como uma carta fechada, que só poderemos ler quando tivermos a coragem de a abrir.
Ele
Quando dei por mim, já estava. Já estávamos a procurar uma casa, a contratar o arquitecto, a mergulhar em meses e meses de obras infindáveis, a telefonar todos os dias ao empreiteiro que deitou as paredes abaixo e levou sumiço, mais os seus empregados ucranianos. Quando dei por mim, lá andava, no aki, a escolher torneiras e tintas para as paredes, no ikea a carregar estantes, as costas feitas num oito de tanto levar caixas de móveis escada acima. E a vidinha virada do avesso, a ter de lhe levar o cão a passear, a ter de aturar a mãe dela lá em casa, a dar palpites sobre os azulejos da casa de banho.
Agora lá estamos, a viver juntos, ela já a derreter-se para as criancinhas que lhe aparecem à frente e a lançar-me olhares de enviezado, a ver se passa a mensagem do relógio biológico enquanto eu finjo que não vejo, porque ainda me falta conhecer meio mundo antes de passar as férias no Algarve na casa dos sogros porque as crianças são muito pequenas para viajar para a Amazónia ou para atravessar os Estados Unidos ou descer até à Patagónia de autocarro.
Mas era suposto. Porque é mais prático, porque era uma estupidez continuar a pagar juros de dois empréstimos para habitação, porque afinal era como se já vivessemos juntos e apenas formalizamos a coisa. Porque vamos ter um espaço que é dos dois e onde já não vou ter de estar sempre preocupado porque por acaso me esqueci de passar o lavatório por água depois da barba ou de guardar as camisas no cesto da roupa suja.
É melhor porque gosto dela e porque há muito tempo que andamos a falar nisto, mas a factura é grande e ainda não sei se serei capaz de a pagar. Ela tem umas teorias quaisquer, sobre cartas fechadas. Eu por mim prefiro pensar que se não der certo, então paciência, nessa altura logo se vê.