A duas vozes (cont.)
Telefonei-lhe. Agora está feito e pronto. Descobri por acaso o telemóvel escrito à mão nas costas do cartão e liguei na hora do almoço quando não havia ninguém no escritório. Ficou admiradíssimo, claro, eu eu toda entaramelada, já sem saber o que havia de dizer e a inventar desculpas sobre uma vírgula qualquer numa das cláusulas do contrato. Deixei-o preocupado, porque me propôs logo que nos encontrássemos mais tarde, para rever tudo. Estranhei que tivesse sugerido uma esplanada, mas com o calor que estava hoje até achei boa ideia e lá fui eu, depois de um quarto de hora de afobação a disfarçar as borbulhas e a tentar atinar com o baton adequado para a roupa que trazia vestida. Senti-me um bocado idiota, mas pronto. E afinal não serviu para nada. O homem estava cheio de pressa, falou de trabalho o tempo todo e desta vez já não lhe achei tanta graça. Ainda lá estava o sorriso bonito, mas não demonstrou o menor interesse em voltar a ver-me, apesar de me ter pedido o telemóvel, não vá o diabo tece-las e aparecer mais alguma virgula num sítio impróprio. Nestas coisas a minha intuição não falha: é gay, de certeza absoluta. Como é que o Jaime me foi falhar logo numa altura destas? Se calhar não é o tipo dele, deve ser isso. Que raiva! E eu tão preocupada com o baton e com as borbulhas. Ao menos pagou o café, vá lá, mas eu não me livrei de apanhar uma molha porque no caminho de volta desatou a chover furiosamente. Foi a gota de água! Muitas gotas, aliás! Foi a humilhação total! Acabou-se. Quem me manda a mim cair ao primeiro par de olhos sorridentes que me aparece à frente????
ELE
Telefonou-me! Eu sabia. Nestas coisas nunca falho. Veio com uma desculpa esfarrapada sobre o contrato que eu já tinha revisto e estava impecável, mas fingi que fiquei preocupado e levei-a a tomar café à minha esplanada favorita para engates em fase inicial. Caem todas que nem patinhos quando lhes começo a falar da vista e do rio e outras balelas do género. Foi uma bela jogada, porque desta vez já lhe comecei a achar mais piada. Ía acenando que sim a tudo o que ela dizia e aproveitando para anotar mentalmente os pormenores. O decote, mais exactamente, que é sempre um pormenor de grande importância. A esplanada deu resultado, mais uma vez, e tenho a certeza que a coisa está garantida. mais uns telefonemas, um convitezito para jantar, tudo dentro das regras, e está no papo. Pedi-lhe o telemóvel, porque pode aparecer mais algum problema no texto final do contrato - como se aquilo não estivesse já visto e revisto - e já apostei um almoço no Gambrinus em como no fim de semana ela aceita ir lá a casa ver a bela da colecção de borboletas (apostei comigo próprio, não estejam já a pensar coisas!).