domingo, janeiro 07, 2007

Decisão de ano novo

Saiu de casa com a gaiola do pássaro, o cabide almofadado que parecia um busto sem cabeça e que tinha herdado da avó, e a velha mochila do ginásio com os CD da Elis e da Ella. A mala com a roupa ficou, havia de a vir buscar depois se lhe desse para isso. Ou talvez se metesse nos saldos e investisse num guarda-roupa novo. O pássaro também ficou, mas com a janela da cozinha aberta, portanto já se devia ter juntado aos outros que se abrigam nas árvores da Gulbenkian. Também merecia uma vida nova. Tinha sido essa a sua decisão de ano novo, enquanto olhava para o fogo de artifício que vinha da Praça do Comércio: uma vida nova. E o primeiro dia do ano era tão bom como outro qualquer para a começar. Não sabia para onde ia, mas depois se preocuparia com isso.
Passou as obras do Metro no Saldanha, desceu a Fontes Pereira de Melo até ao Marquês e daí até à Baixa e até ao rio. Sempre com a gaiola (aberta) e o cabide nas mãos. A gaiola, onde nunca mais viveria nenhum pássaro, serviria para lhe lembrar o quanto lhe tinha custado a prisão em que vivera nos últimos quinze anos. O cabide era a ligação ao passado e à avó, que viveu numa prisão a vida toda.
Nessa noite o marido chegaria a casa e não teria o jantar na mesa, como de costume. Não se sentariam os dois no sofá da sala a ouvir os interminaveis concursos da televisão. Não iriam para a cama e não desligariam o candeeiro da mesa de cabeceira sem sequer se ouvir um simples boa noite. Nessa noite, não sabia sequer onde dormiria, mas sabia que a sua vida seria diferente.
Sentou-se na estação, de frente para o Tejo e a olhar sem ver os barcos que iam e vinham do Barreiro. Voltou a lembrar-se da caixa que no dia anterior descobrira debaixo do banco da frente do carro. O laço dourado o papel de embrulho da Armani, o cartão onde uma letra de mulher escrevera "para o amor da minha vida, e para que este seja o ano em que finalmente ficaremos juntos", deixando em baixo uma ridícula marca de baton de uns lábios pintados de vermelho vivo.
Verificou cuidadosamente a carteira, com os cartões de crédito gold que o marido lhe oferecera nos últimos anos e comprou um bilhete de barco. A primeira de muitas compras. Como toda a gente sabe, a vingança é um prato que se serve frio.