domingo, abril 29, 2007

Viver de amores

Não morreu de amores, claro, até porque disso, já se sabe, ninguém morre, mas ganhou um brilho diferente nos olhos. Qualquer coisa muito próxima da loucura, que o faz, de repente, no meio de uma qualquer inócua conversa sobre o tempo ou sobre os últimos lances do Cristiano Ronaldo, falar sobre o magnífico cabelo da Sandra. Ou sobre os olhos azuis em que costumava perder-se. Ou sobre aqule jeito dela, de lhe encostar a cabeça no ombro quando iam ao cinema. Ao início, os amigos fingiam que não reparavam e continuavam apressadamente a conversa, saltando para os feitos do Mourinho ou para os azares do Benfica. Agora, delicadamente, lembram-se que têm de ir à casa de banho, ou que estão atrasados para um jantar em casa da sogra. Ou então vão buscar mais um copo e ficam à conversa com outro amigo qualquer. Ele não se chateia. Nem liga. Olha à volta, à procura de mais uma cara conhecida, e lá vai, porque há sempre muito o que contar sobre a Sandra. Muitas coisas boas para lembrar e para voltar a contar, até à exaustão, a quem ainda tenha coragem para ouvir.

O Bruno sempre foi diferente. Vagueava algures, num mundo onde poucos conseguiam chegar, mas não havia quem não gostasse dele no grupo que naquele ano entrou para a universidade. A sua popularidade era inversamente proporcional à da Sandra, que nunca passava despercebida em sítio nenhum, mas que colecionava antipatias. Entre as mulheres, porque sim, entre os homens porque o permanente ar de superioridade deitava por terra mesmo os egos mais fortes e nenhum estava para a aturar. Só o Bruno. E, por ela, o Bruno foi até ao fim do mundo. Mudou de cidade. Mudou de emprego. Casou-se de fato e gravata e deixou de ver os amigos, mesmo quando algum fazia os 300 quilómetros que os separavam. Nunca tinha tempo. Todo o seu tempo era dela.

E, depois, não se aguentou com o choque. Não conseguiu descobrir como havia de continuar a viver quando ela lhe disse que já não lhe apetecia, sem quê nem porquê, só porque não. Não soube o que fazer, mas teve de se desenrascar, porque a vida continuava, mesmo sem a ele lhe apetecer. E só encontrou uma saída: fingir que ela tinha morrido e, com ela, tudo o que de mau lhe tinha acontecido a ele nos últimos anos.

quinta-feira, abril 12, 2007

Sabedoria de taxista

Depois dos quarenta é sempre a correr. Nem damos por eles. É como se nos encostássemos a uma esquina, de jornal na mão, e o vento fosse virando as páginas e as páginas fossem os anos e o vento fosse tão forte que não o conseguíssemos parar. É sempre a correr. Por isso mais vale aproveitá-lo. E não pense que está muito longe, que ainda é muito jovem, que falta muito para lá chegar, porque um dia destes acorda e pronto, já está.

terça-feira, abril 03, 2007

Jardim

As maravilhas foram as primeiras. Há uma que já abriu completamente, pétalas laranja a brilhar no branco da parede, no verde da relva. Há mais duas ou três à espera do sol, para se juntarem aos lírios e aos narcisos amarelos e perfumados. A hortencia, no meio do relvado, é uma pequena ilha em cor-de-rosa e a roseira lá vai, em direcção ao céu, os primeiros botões a despontarem. Ao lado da nabiça e das tomateiras-cereja, arrumadinhas no dois metros quadrados reservados à horta, onde já está a salsa, o mangericão, a hortelã pimenta, a hortelã da ribeira e a hortelã só hortelã, que deixam os gatos malucos com o cheiro, vá-se lá saber porquê. A videira que veio do Alentejo parece ter uma folha nova todos os dias e o marmeleiro, a árvore plantada pelo homem cá de casa parece decidida a ultrapassar o muro do vizinho, de tal maneira lá vai, ramos direitos, cheios de folhas, numa corrida contra o tempo.
Só as tulipas me andam a trocar as voltas, mas também elas crescem um bocadinho todos os dias. Agora têm companhia nova, acabada de chegar do Jardim Botânico da Ajuda: uma sempre noiva e um rododendro, compradas, mais uma erva de são roberto e uma torga, roubadas, que as flores não se pedem, levam-se, apesar do olhar de pânico do homem da casa, indignado com o assalto, não fosse algum botânico descobrir e obrigar-se a esvaziar os bolsos.
São vinte, talvez trinta metros quadrados, no coração da cidade, a dois passos de um outro jardim, muito maior, onde os lisboetas se esquecem de ir passear. São os meus metros quadrados, os meus hectares de terra na varanda, a minha pequena herdade onde tudo cresce, nem eu sei bem como e onde, de cada vez que lá vou, cresce também a minha paz.
Entrem. Estão todos convidados.