Nódoas negras
Ela sai de casa, vai ter com o advogado, vai ao hospital mostrar as nódoas negras, vai à polícia e finalmente regressa a casa, cansada de tudo, cansada de si, a tentar manter o sorriso para a criança que ainda tem no olhar o medo que lhe entrou no corpo.
Ele sai de casa. Mete-se no carro e conduz sem saber por onde nem para onde. Tal como a criança, também ele tem medo. Medo de si, do que foi capaz de fazer e, pior, medo de achar que o que fez foi o que devia ter feito.
Ela sofre em silêncio há muito tempo. Já não se lembra quando tudo começou a desaparecer, quando o amor começou, pouco a pouco, a dar lugar ao ódio. Lavou-lhe a roupa, fez-lhe o jantar, tratou da casa, da criança, do carro. Fez tudo o que é suposto fazer uma mulher que deixou de trabalhar para ficar em casa com o filho e só depois percebeu que estava a deixar escorrer o tempo por entre as mãos. Só que aí já era tarde. Ele controlava a conta bancária, tirou-lhe o cartão multibanco, contava os tostões para as compras do supermercado e chamava-lhe inútil por passar o dia em casa e não contribuir para as despesas.
Quando tanto se fala em violência doméstica, nos "milhares de vítimas" que há em Portugal, ainda custa a acrediatar que tão perto de nós há situações destas. Que no século XXI há mulheres com 34 anos que não podem sair de casa porque têm um filho e o magro emprego que conseguiram arranjar não lhes chega para pagar a renda da casa.
Ela sofreu em silêncio violências psicológicas quase diárias. Quando as agressões passaram a ser físicas teve a coragem de denunciar o agressor, ainda seu marido, pai do seu filho.
Ele também sofre, mas diz para si próprio que a culpa é toda dela. Que ainda a ama, mas que, muito provavelmente ela até tem algum amante. Se não, porque haveria de furtar-se aos seus avanços nocturnos, quando, depois de mais uma discussão, se enfiam os dois na cama e ele tenta fazer as pazes?