domingo, fevereiro 12, 2006

A duas vozes

ELE

"Existe outra pessoa". Atirou-me a frase assim, sem mais nem menos e disse que queria o divórcio. Os miudos no quarto ao lado a dormir e nós ali, estendidos na cama, lado a lado, quilómetros a separar-nos, um terreno minado que eu não queria pisar e os olhos dela fixos no tecto, sem me tocarem como antes faziam. Dizem que nos minutos antes da morte a vida nos passa pelos olhos e e minha ali estava, toda, sempre com ela, apesar de lá ter entrado apenas há uns anos. Devo ter morrido durante uns minutos, até que a vida me voltou e fiz o que nunca tinha feito, porque a única coisa que me ocorreu foi deixar-lhe na cara a marca dos meus medos todos. Não sei se algum dia me vai perdoar. Nem sei que alguma dia lhe perdoo eu os dias que se seguiram, em que andei perdido, sem saber por que caminhos seguir, incapaz de me encarar a mim, de encarar os miudos, de encarar os amigos que tinham no olhar a pena por mim, o abandonado, o substituído. O amor e a perda confundiram-se com a raiva e com os medos e caminhei horas e horas pela casa, incapaz de fazer fosse o que fosse a não ser pensar em quem era o outro. Nunca me disse. Voltou dois dias depois, para fazer as malas, e já não voltou a sair. Nessa noite, e em todas as que se seguiram, dormi agarrado à sua mão, incapaz de a soltar, incapaz de a ver sair de novo. Não voltámos a falar sobre o "outro". A vida continuou. Afinal amamo-nos, e isso é que conta, não é?


ELA

Contei-lhe quase sem querer, porque já não aguentava mentir-lhe, esconder as mensagens do telemóvel e dar sumiço às facturas detalhadas da TMN. Contei-lhe por puro egoísmo, porque não sabia ainda o que queria. Depois, desatou-se o novelo e começou a pior noite da minha vida. Dizem que o amor transfigura as pessoas, por isso não foi ele que deixou no meu rosto as marcas dos seus dedos. Foi outro qualquer, um homem que não era o pai dos meus filhos, apesar de ter as mesmas feições. Também não foi ele que me pôs fora de casa numa noite gelada e depois me perseguiu pelas ruas durante dias seguidos. Não foi ele, tenho a certeza. Mas foi ele quem me abraçou quando voltei para fazer as malas e me disse que me ama mais do que a vida. Foi ele quem me disse que só ali é que sou feliz. E eu acreditei. Não me fez mais perguntas. Também não lhe disse mais nada. O "outro", como ele lhe chama, à falta de um nome, morreu. A vida continuou e nós continuamos a amar-nos como antes. Espero...

11 Comments:

Anonymous Anónimo said...

já notou quão grande é a dificuldade de assumir o "outro" dentro de nós? Sempre achei que o lado sombrio da lua é que dá o brilho do luar...

1:30 da tarde  
Blogger maria carolina said...

Já tinha saudades destes teus "a duas vozes". São brilhantes! Um beijinho.

10:55 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

às vezes (nem sempre, admito), gosto que me digam que me gostam de ler. só assim, sem mais. não é por este post ou um outro qualquer, é porque gostam (e se gostam não podem, não devem, gostar de tudo. eu também não gosto de tudo o que escrevo. nem de tudo o que leio). mas, enfim, serve este arrazoado, só para lhe dizer:
gosto de a ler ponto final parágrafo

1:27 da tarde  
Blogger girl said...

depois desse episódio, não acredito que seja possível continuar a amar como antes. Toda a pureza do amor desaparece com estes episódios.

4:49 da tarde  
Blogger André Parente said...

De facto, estes teus "a duas vozes" são brilhantes. Este em particular irritou-me um bocado mas... ;)
E sim, concordo com o(a) sldance. Toda a pureza desaparece...

4:45 da tarde  
Blogger elisa said...

Queria tanto que se percebesse o quanto gostei do que li...tão humano, sentido, despojado e intenso...e não sei como.Suspiro. Gostei tanto.

5:02 da tarde  
Blogger mena said...

vocês estragam-me com mimos :)

11:18 da tarde  
Blogger Pata said...

Que bonito recomeçar...parabéns aos dois, que foram em frente se medo de arriscar novamente.
Foi uma valsa bem dançada, daquelas que apetece olhar.

2:49 da tarde  
Blogger Cleopatra said...

Tudo está bem... quando acaba bem..
Ou seja aqui nada tinha acabado nem acabou..

6:23 da tarde  
Blogger Kiau Liang said...

tb eu espero....

12:02 da tarde  
Blogger Broken M said...

o amor não tem regras. E sim, é sempre possível amar...

1:18 da tarde  

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