segunda-feira, novembro 13, 2006

Lareira


Começou devagarinho, primeiro de um amarelo clarinho, quase escondido pelo fumo, e depois foi por aí fora, laranja forte, vermelho vivo, a subir e a encher-me a casa de cheiros. Tenho uma lareira em casa, coisa que já não me acontecia desde que vim para esta cidade apressada, onde os apartamentos não têm tempo nem espaço para estes luxos. Tenho uma lareira na sala e estou a usá-la pela primeira vez. Por isso tudo são surpresas, mas só por um ou dois segundos. Porque, de repente, lá estou eu, na cozinha da minha avó, no monte alentejano onde passei tantas férias e tantos fins-de-semana. E, depois, na sala da minha mãe, nas noites compridas que escureciam às cinco da tarde, com chuva lá fora e eu no quentinho, a ler pela enésima vez a colecção dos Cinco, dos Sete, das Gémeas, misturados com os Julio Verne, os Julio Dinis e os Eça, que roubava da estante às escondidas da mãe ou trazia da biblioteca itinerante da Gulbenkian quado o senhor Joaquim, o bibliotecário, já tinha uns copitos a mais e me deixava registar o que muito bem me apetecesse.
Vou mais um bocadito atrás no tempo e lá está o meu avô, mais as suas histórias fantásticas de fadas, bruxas e magias, horas e horas, pela noite dentro, a pairarem no fogo da lareira, o cheiro do fumo misturado com o do chá e das castanhas assadas nas cinzas.
E, anos depois, um Outubro em que achava que já sabia tudo e em que sair do meu Alentejo me parecia a coisa mais importante do mundo. Hoje telefonei ao Luis, com quem já não falava há vários anos, e démos por nós a lembrar o dia em que o nosso nome apareceu numa pauta, com o FDL de Faculdade de Direito de Lisboa à frente.
Tudo me vem à cabeça enquanto vejo o lume a subir, a ganhar cores e a encher-me a sala, o tempo, as memórias.
É extraordinário o poder dos cheiros e das cores. Agarro a mão que se estende ao meu lado e ficamos ali os dois. Parece um final piroso, de um filme romântico qualquer, mas sabe tão bem...

18 Comments:

Blogger panamá said...

a memória olfactiva é preciosa! sinto a minha apuradíssima, também. Enquanto descrevias os serões de inverno, passados à lareira, rapidamente me socorri também da minha memória e perdi-me nas minhas lembranças, de uma lareira incrível, do conforto proporcionado por ela e pelo calor dos meus pais e dos meus gatos. É o primeiro inverno que não passo em casa deles...e vai-me custar! Obrigada pela bela descrição, minha jóia. Beijinhos

12:51 da tarde  
Blogger turbolenta said...

Felizes as pssoas que tiveram uma infância feliz,ou que pelo menos passavam férias, em qualquer aldeia perdida por este país.Quem sempre viveu em Lisboa não tem,certamente, memórias tão fortes,tão sentidas,e creio que nem sabe dar valor a estas pequenas coisas do dia a dia, que nos chegam à memória e que nos fazem tão felizes, nem que seja por breves instantes.
Beijinhos

2:49 da tarde  
Blogger João Barbosa said...

Ai que até me deu um arrepio ao ler aqui Júlio Dinis ;-)...

3:20 da tarde  
Blogger mena said...

ai, o que eu gostava da mogadinha dos canaviais e dos fidalgos da casa mourisca, queri do João. recomendo vivamente, aliás :)

3:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Theres no place like home!- Marina

4:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sabes, acho que fizemos percursos inversos e, no fim, o que é igual é o facto de os que amamos terem ficado lá - na nossa terra - e isso é sempre motivo para desejar voltar!

4:34 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eu também me lembro de lareiras. Mas nos livros. Li sempre muito e muita literatura portuguesa. Adoro Eça. Mas nasci e moro em lugar quente, tropical. Aqui as lareiras são de enfeite, quando as há. Então lareira pra mim é coisa européia, chic, rara. Eu tinha que fechar bem os olhos, abstrair a temperatura de 30 graus e imaginar o bom que pode ser um foguinho...Haja imaginação!

5:48 da tarde  
Blogger *ci* ramoss said...

Nas terras de minha infância não existiam lareiras. Morávamos no sertão, lugar quente por natureza. O mais próximo são as fogueiras de São João, com quitutes e milho assado, no mês de junho. Seja como for, o crepitar do fogo nos remete às nossas ancestralidades.

9:20 da tarde  
Blogger mfc said...

Ninguém com uma lareira está só em casa.
É uma companhia fantástica.

Fizeste-me sorrir ao recordar os livros que, religiosamente, íamos requisitar áquela carrinha Citroen que parava debaixo dos arcos da Câmara da minha terra todos os 15 dias!! Ou seria de mês a mês?!
Já lá vão uns anitos...

2:14 da manhã  
Blogger Xixao said...

Nem acredito? Alentejana? Um monte? casa antiga com chaminé? Castanhas assadas nas brasas da lareira? (E bolotas, não?), Os Cinco, Os Sete, As gémeas, o colégio das quatro torres, Júlio Verne? A vinda do alentejo para Lisboa? Faculdade de Direito de Lisboa? Juras!? Olha que tb eu eu tive esse percurso todo, todo, todinho,...tal e qual! Só que hoje tu continuas em Lisboa e eu regressei ao Alentejo/Espanha... que graça! Coincidências... Olha, e também tenho lareira!!!

10:01 da tarde  
Blogger elisa said...

Pois deve saber:)
Beijos

3:30 da tarde  
Blogger Isa said...

e eu gostei mt do post. bjs

4:53 da tarde  
Blogger Mónica (em Campanhã) said...

qu'inveja...

10:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

não importa se este relato é verdadeiro ou fantasiado. achei piada porque tenho também essas memórias de leituras, muito júlio verne, os cinco,.. as bibliotecas itinerantes da F.G., mas não tinha lareira - de resto, o frio e o conforto de cheiros e cores era partilhável por todos, não era?

10:18 da manhã  
Blogger IPQ said...

Eu não te disse que o frio acabaria por aparecer e tu irias acender essa fantástica lareira?
Gosto de ti.
tenho saudades

8:05 da tarde  
Blogger remiguel said...

hum, sabe bem sabe. estou particularmente interessado em saber se não haverá por aí uma festa de inauguração da lareira. e claro que terá de ser num dia de temporal!

2:13 da tarde  
Blogger Sandra said...

Que bom ter uma lareira! Também sinto falta de uma, que me aquecia nas noites frias :)

10:36 da tarde  
Blogger gracinha, a artista do burlesco said...

eu já fui, já voltei, vou outra vez, mas isto aqui está na mesma... poderia dizer que é bom haver coisas que não mudam... mas isto já é demais.
escreve qualquer coisa!

3:33 da tarde  

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