Medo
Sei que ando desaparecida, que deixei de atender o telemóvel e não respondo às mensagens dos amigos. Mas tem de ser. Como posso enfrentá-los agora e explicar-lhes que voltei para ele, que não apresentei queixa na GNR e que aceitei passar uma borracha em cima daquela noite e fingir que nunca aconteu? Sei que não compreenderão, por isso ando desaparecida. Talvez acabem por se esquecer e um dia destes voltem a convidar-nos aos dois e às crianças para jantar, como antes costumavam fazer. Até lá não responderei aos telefonemas, porque assim é mais fácil e não terei de dar explicações. As marcas desapareceram-me do rosto e já não as vejo lá quando me olho no espelho, o que ajudou a esquecer. Também já não sinto dores nas costas no sitio onde ele me bateu e há noites em que, quando nos deitamos ao lado um do outro e desligamos a luz, imagino que tudo não passou de um sonho mau, como aqueles que tinha quando era miuda e o meu pai fechava a minha mãe na cozinha e discutiam até de madrugada. Sinto-o ali, adormecido, a respiração calma de uma consciência leve, e ponho-me a pensar se não terei mesmo sonhado tudo. Se calhar foi por isso que deixei passar o prazo para apresentar queixa, apesar de a GNR me ter aconselhado a faze-lo quando veio cá a casa a meio da noite, depois do telefonema da vizinha do lado. Se calhar foi por isso, ou então foi porque me faltou a coragem de ter de contar ao mundo que sou mais uma que apanha do marido, a coragem de mandar tudo ao ar, de perder a casa acabada de comprar e a vida de todos os dias, com os seus caminhos certos e familiares. Passou um mês, a realidade já se confunde com os sonhos e ao vê-lo aqui ao meu lado, adormecido, respiração suave de consciência leve (ou de falta dela), decido mais uma vez que não atenderei telefonemas nem responderei a mensagens. Porque se nem sou capaz de explicar a mim própria porque voltei para ele, como conseguirei contar aos amigos?
17 Comments:
História muito bem escrita, sim senhora.
Lá está: ficção que não é ficção, lamentavelmente!, mas demasiado
comum e vulgar.
Sempre bem escrito.., e sentido como se fosse na 1ª pessoa (ainda bem que sei que não és tu) e infelizmente estas histórias são cada vez mais comuns... mas bastante invulgares atendo ao tipo de violência vivênciada por estes seres humanos. E para quem está perto destas pessoas é mais fácil fechar os olhos e fingir que estas histórias são uma coisa comum e vulgar..., que não é nada que nos diga respeito e não podemos fazer nada..e até nutrimos por estas sítuações alguma indifrença e desrespeito, permitindo assim que o agressor permaneça impune que a vítima continue com a sensação de beco sem saída. Felismente existe T&V para nos alertar, também ,para estas realidades, é bom saber que ainda hà seres solidários e conscientes. Mar
Brilhante! Fico muito, muito feliz por este blogue voltar a encarnar personagens pertinentíssimas, que existem e que não devemos ignorá-las! Parabéns, minha jóia, pela lucidez!beijinhos e continua, por favor
obrigada às três, cada uma à sua maneira...
infelizmente esta é uma realidade q afecta mt gente.
gostei mt do tema e da forma como o abordaste.
bjs
Bem, como sempre.
Mais uma vez seu conto me surpreende pela força da realidade. Acabo de estar com uma amiga querida, que passou por isso e ainda hoje vive atormentada, apesar dele estar morando em outro estado. Acho que a vergonha e o medo andam lado a lado nesse tipo de relação.
Ci!!
o que aconteceu ao Particularides??
A estatística dos casos de violência contra a mulher é muito triste, por aqui. Durante anos tivemos que disseminar a frase " quem ama não mata" como campanha. É trágico, não é, ter que repetir isso à exaustão! Fora o sentimento " de culpa" que é incutido nas mulheres que sofrem violência. chegam a achar que o marido pode ter motivos. Dão relatos de que " esqueci de fazer o jantar dele, coitado" ou "não costurei a roupa" e por aí vai. Melhorou um pouco com a criação das delegacias da mulher mas temos ainda um longo caminho pela frente pra mudar essa concepção.
Beijos.
Aqui está uma história que compreendo, mas não concebo...nunca o faria, nunca mesmo!
As mulheres que se encontram neste tipo de situação também hão de ter dito nunca, um dia....e isso dá medo...por isso mais vale repetí-lo para esconjurá-lo: nunca, nunca,nunca, nunca....
Beijnhos e parabéns por mais um texto fantástico
Oi T&V soh agora vi teu recado. Se te contasse a história de estar com o particularidades fora do ar, vc, com certeza, faria um conto, KKKK. Vamos dizer q estava recebendo uns comentários anonimos e preferi dar um tempo. E ainda nao tive inspiração para criar outro, então, por enquanto, soh via email. Mas sempre venho te visitar. Bjocas.
Oi T&V soh agora vi teu recado. Se te contasse a história de estar com o particularidades fora do ar, vc, com certeza, faria um conto, KKKK. Vamos dizer q estava recebendo uns comentários anonimos e preferi dar um tempo. E ainda nao tive inspiração para criar outro, então, por enquanto, soh via email. Mas sempre venho te visitar. Bjocas.
"mandar tudo ao ar" será sempre ficar
excelente texto. excelente.
excelente texto!
Realmente é incrivel como nos manifestamos através das nossas ausências, como elas nos delatam aos olhos do observador atento.
de vez em quando venho aqui visitar o blog, chamou me a atenção talvez por dançar tango...
tu danças?
aparece no meu
tudoabanenadacai.blogspot.com
Muito corajoso este teu texto! Gostei!
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