sexta-feira, junho 24, 2005

África

São duas da manhã, hora local, quando o avião aterra. Estamos em África, é época das chuvas e o céu parece ter aberto todas as comportas para receber os visitantes. À excepção de meia dúzia de naturais da terra, que vão de visita à família, o grupo de passageiros é composto por jornalistas e VIP locais. Lá em baixo, na pista, há dezenas de pessoas à espera, com chapéus de chuva abertos para que ninguém se molhe no breve percurso até ao terminal das chegadas. Já lá dentro, a mesa está posta: águas, refrigerantes, frutas. A recepção perfeita. Sem passar pela alfândega (os VIP não precisam disso), somos conduzidos ao autocarro que nos transportará ao hotel. As malas - um número incrível de Louis Vuitton - são encafuadas juntamente com os passageiros. No rádio ouve-se uma inesperada música de Zeca Afonso: "Chamaram-me um dia, Cigano e maltês, Menino, não és boa rés..."

O hotel que nos reservaram é o mais luxuoso da cidade. Para além deste há apenas um outro, também de quatro estrelas. A limpeza é absoluta, mas não disfarça o cheiro a mofo e as paredes ostentam ainda buracos de balas, recordações de uma guerra recente. A simpatia dos empregados suplanta tudo. Tal como o magnífico pequeno almoço, simples mas com as frutas mais saborosas que alguma vez provei.

No dia seguinte, espera-nos o encontro com o Primeiro-Ministro. O seu gabinete não tem mais que cinco ou seis metros quadrados e no chão há pilhas de dossiers. A formalidade, contudo, é absoluta. Só mais tarde, já no final do encontro, podemos colocar questões que não têm a ver com o assunto que ali nos levou. Pergunto-lhe pelos investimentos portugueses no seu país e a resposta vem cheia de orgulho: Há pelo menos meia dúzia de empresas que já fizeram parcerias com empresas locais. Curiosamente, em todas elas o próprio Primeiro Ministro é o principal accionista. É ele próprio quem o diz, sem qualquer inibição. Todos sabem, aliás, que ele é o maior proprietário imobiliário da cidade. Há quarteirões inteiros de casas que lhe pertencem a si ou à sua família.

Estamos mesmo noutro mundo. Ali a Europa não existe. E África não tem nada a ver com nada. A pobreza das pessoas é inimaginável e, contudo, todos nos recebem com sorrisos enquanto passeamos pelo mercado central. Aí vende-se de tudo, desde comida a roupa, sapatos em segunda mão, motores de automóveis, camas e sofás orgulhosamente expostos no meio da rua numa espécie de montra gigantesca. Há porcos e cabras amarrados às árvores, crianças que fazem gincanas em bicicletas a cair aos bocados, meninas incrivelmente pequenas que transportam à cabeça tabuleiros com amendoins cozidos ou caju para vender.

Tudo seria bonito, se fosse possível ignorar a pobreza em que vivem.

(Setembro de 2004)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ah, África, o vento soprando a sua leve brisa pelo amarelo ardente desse continente que todos levamos na alma.
Que saudades de um gin tónico com os olhos perdidos no horizonte multicolor, desejando que a vida de todos os povos de África fosse mais beleza e menos ministros assim.
Não poderiam ser os governantes de África belos? Nao poderiam ser humanos? Quando será que´as áfricas mudam de vida? Como fazer? Deveríamos fazer alguma coisa? Não teremos já feito mais do que suficiente? Não críamos esses ministros, não retalhámos esse continente a esquadro e navalha? Não sangrámos tribos, terras, minas, águas?
Que fazer?
Minha amiga, continue a ver essa podridão sem nunca perder de vista a beleza. Aponte e admire. Continue.

6:25 da tarde  

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