terça-feira, maio 30, 2006

Casamento

No confessionário, com o velho padre da aldeia, um dia antes do casamento:
- Então, minha filha, diga lá, o que a traz por cá?
- Vou-me casar, senhor padre, e queria comungar na cerimónia.
- Ah, pois faz muito bem, faz muito bem. E com essa carinha laroca nem deve ter pecados nenhuns a contar a Deus Nosso Senhor... Há quanto tempo não se confessa?
- Há uns três anos...
- Três anos??? Isso é muito tempo, já temos aí um grande pecado! E o que fez nesse tempo todo? Já teve relações sexuais com o seu namorado?
- Bom... quer dizer... sim, sabe como são essas coisas...
- Ai não sei, não! Sei é que a Igreja condena, e condena muito. As relações sexuais antes do casamento são uma coisa muito feia. Muito má. E quantas vezes?
- Quantas vezes o quê?
- Quantas relações sexuais?
- Bom... não sei. Mas isso é importante?
- Claro que é. Importantissimo para eu decidir que penitência lhe dou. Isto se lhe der a absolvição, que nem sei ainda se o vou poder fazer.
- Mas e não quer saber mais nada? Não quer saber por exemplo se eu matei alguém, se roubei, se cometi algum dos sete pecados mortais?
- Ora, ora, esses toda a gente confessa, dessas coisas é fácil falar, agora das relações sexuais já é muito mais difícil... Quantas vezes?
- Não me lembro?
- Não se lembra? Fez e esqueceu-se? É essa a importância que dá a uma coisa dessas?
- Não me lembro.
- E já vive com o namorado?
(silêncio)
- Responda!
(Silêncio)
O padre espreita para fora do confessionário. O lugar estava vazio. No dia seguinte, o padre que celebrou o casamento, amigo de infância dos noivos, chegou uma hora mais cedo e resolveu a questão.

domingo, maio 28, 2006

Condomínio

E fazem sexo, menina. Horas seguidas, nem faz ideia o barulho que aquilo é, mesmo aqui por cima do meu quarto. Abana o candeeiro, abrem-se-me rachas na parece, tenho a minha casa a cair e eles todas as noites naquilo, sempre a fazerem relações sexuais. É gente sem educação, que não sabe viver numa casa, que não respeita ninguém. Já a encontrei nas escadas, já lhe pedi com toda a educação que faça menos barulho, mas são piores que os gatos. A minha cabeça não aguenta. Até tenho uma certidão da minha médica, a dizer que não pode ser, que preciso de descansar, que tenho a tensão alta, que não posso comer coisas com sal, e esfreguei-lha na cara, mas nada. Nada resulta. Nem a polícia. Sim, porque já por mais de uma vez chamei a PSP, e o senhor agente até foi muito simpático e muito compreensivo, mas eles pouco ligaram, na noite seguinte já lá estavam, na mesma. E eu já não sei o que hei-de fazer. Fui ao tribunal, fiz queixa, levei fotografias das rachas na parede e do candeeiro a cair, mas também me dizem que não podem fazer nada, que a única hipótese era enfiar uma toalha na boca da mulher, a ver se abafava o barulho, mas que cada um faz o que quer na sua casa. E eu, nos meus 60 anos, com a carta da médica na mão, fiquei a olhar para o juiz, que deve ser outro igual, que se calhar também só pensa em sexo e os vizinhos não têm coragem de lhe dizer nada só porque ele é da autoridade. Não sei o que hei-de fazer mais, que eu vivo sózinha, nunca tive marido, toda a vida fui uma mulher respeitada, e agora isto. Ai, menina, que é que eu faço à minha vida?

Gosto...

... deste blog:
infotocopiavel.
É um daqueles que, não sendo anónimo, nos faz ver o autor com outras cores.
Obrigada, Diogo!

quinta-feira, maio 25, 2006

Dúvida existencial

Tenho uma amiga que tem um blog. Começou como uma brincadeira, a ideia era uma espécie de T&V, com histórias malucas, para treinar a escrita. E de repente tornou-se num sucesso. Daqueles que têm imensos leitores, imensos links, fóruns de discussão, gente que lá vai todos os dias, dezenas de comentários. E ela diverte-se. Imenso. Quando deu por si, o blog transformou-se numa espécie de diário. Um divã de psicanalista sem ter de pagar fortunas. Um sítio virtual para descarregar emoções, sorrisos, lágrimas, amores, desamores.

A minha amiga trabalha numa grande empresa. Daquelas onde se cruzam dezenas e dezenas de pessoas. Pequenos mundos onde todos se conhecem e pequenas histórias fazem delícias das boas e das más linguas. O Google, que como toda a gente sabe não brinca em serviço, tratou de lhe divulgar o blog. Uma busca, uma palavra chave qualquer e pronto. No escritório já toda a gente sabe, comentam junto à máquina do café, olham para ela e sorriem sem razão, ainda que ninguém tenha a coragem de lhe perguntar directamente. E todos lêm nas linhas e nas entrelinhas. O blog tornou-se numa inesperada fonte de imaginação. Ela passou a ter imensos amantes, discute-se quem é o ex de que fala, que história foi aquela com o marido, quem foi o outro que conheceu nas férias, quem é a tipa sobre quem escreveu...

E um blog que era um prazer, tornou-se numa dúvida. Porque quando escrevemos e sabemos que quem nos lê sabe quem somos, perdemos toda a espontaneidade. E fica a dúvida: continuar ou, num acto de misericordia, fazer apenas delete?

sábado, maio 20, 2006

Sabedoria de mãe

Aquilo que procuramos às vezes está caído no tapete da nossa porta.

quarta-feira, maio 03, 2006

Burocracias

Voltámos a encontrar-nos no Notário. Ele tinha ligado duas ou três vezes, para saber da Mariana, que apanhou varicela, mas atendeu a empregada. E quando foi preciso acertar alguma coisa da venda da casa usámos o email e as providenciais SMS, que me livraram de ter de lhe ouvir a voz e correr o risco de me desfazer em pedaços.
Por isso só nos voltámos a ver no Notário. Com um silêncio mais pesado do que a burocracia que enche as paredes do edificio. Um silêncio tão grande que toda a gente deve ter dado por ele, das empregadas loiras acetinadas aos desgraçados que estavam na fila há horas e horas só para reconhecer uma assinatura. Perdi a conta às vezes que li sem ler as palavras alinhadas no BI que tinha na mão, suponho que ele fez o mesmo, porque lhe evitei os olhos. Fixei-me apenas nas mãos onde ainda se nota a lista branca da aliança no moreno dos dedos. Assinámos sem ver. De cruz. O gerente do banco ficou com o cheque. Eu fiquei com a cópia da escritura de venda. O princípio do fim, porque ainda há-de vir o resto, a outra folha de papel, onde um outro funcionário público há-de escrever que já não somos casados, que não estaremos juntos para o melhor e para o pior até que a morte nos separe. Palavras escritas que não serão precisas, porque isso já nós o sabemos.
Saímos do Notário cada um no seu elevador e ainda o vi, de fugida, a descer as escadas do metro. Lá fora estava a Primavera. Olhei para o chão e os olhos caíram-me nos pés, nas minhas sandálias preferidas. As mesmas que usei há dois anos num outro dia ensolarado, quando um outro funcionário público, monocórdico, disse pode beijar a noiva e lá fora nos esperavam a família e os amigos com as mãos cheias de arroz carolino.
Antes achava que as coisas más só aconteciam nos dias cinzentos. Hoje foi o sol que assisitiu a tudo.