quarta-feira, fevereiro 22, 2006

A duas vozes

Ela

Do singular para o plural. A pasta de dentes apertada ao meio e não em baixo, as cuecas esquecidas no chão da casa de banho, os pelos da barba que entopem o lavatório, a cozinha virada do avesso só por causa de uma sopa e de uns ovos mexidos. E mais. O meu cão e o gato dele que não se podem ver um ao outro sem destruir os bibelôts da estante, os cd meticulosamente arrumados por ordem alfabética que se perdem pela casa toda. Ou, o grande terror, as frases que se instalam, amor, como foi o teu dia no escritório? os gestos sempre iguais, o sexo ao fim-de-semana porque nos outros dias estamos demasiado cansados.
Do singular para o plural, porque sim, porque namoramos há demasiado tempo, porque ao fim e ao cabo ele já dorme cá em casa todas as noites e por isso não faz sentido pagar duas rendas.
É normal, é racional, mas tem o peso daquilo que é suposto ser definitivo. Tem o peso das coisas a dois. Dos pequenos almoços a dois, dos jornais na esplanada a dois, dos almoços em casa da sogra... a dois. E das idas a dois ao veterinário, com o cão e com o gato que se atacaram um ao outro pouco antes de terem destruído para sempre a estante do escritório.
Ao mesmo tempo, o definitivo é bom. O amor é bom. As noites são melhores. E, afinal, como diz a minha mãe, é como uma carta fechada, que só poderemos ler quando tivermos a coragem de a abrir.

Ele

Quando dei por mim, já estava. Já estávamos a procurar uma casa, a contratar o arquitecto, a mergulhar em meses e meses de obras infindáveis, a telefonar todos os dias ao empreiteiro que deitou as paredes abaixo e levou sumiço, mais os seus empregados ucranianos. Quando dei por mim, lá andava, no aki, a escolher torneiras e tintas para as paredes, no ikea a carregar estantes, as costas feitas num oito de tanto levar caixas de móveis escada acima. E a vidinha virada do avesso, a ter de lhe levar o cão a passear, a ter de aturar a mãe dela lá em casa, a dar palpites sobre os azulejos da casa de banho.
Agora lá estamos, a viver juntos, ela já a derreter-se para as criancinhas que lhe aparecem à frente e a lançar-me olhares de enviezado, a ver se passa a mensagem do relógio biológico enquanto eu finjo que não vejo, porque ainda me falta conhecer meio mundo antes de passar as férias no Algarve na casa dos sogros porque as crianças são muito pequenas para viajar para a Amazónia ou para atravessar os Estados Unidos ou descer até à Patagónia de autocarro.
Mas era suposto. Porque é mais prático, porque era uma estupidez continuar a pagar juros de dois empréstimos para habitação, porque afinal era como se já vivessemos juntos e apenas formalizamos a coisa. Porque vamos ter um espaço que é dos dois e onde já não vou ter de estar sempre preocupado porque por acaso me esqueci de passar o lavatório por água depois da barba ou de guardar as camisas no cesto da roupa suja.
É melhor porque gosto dela e porque há muito tempo que andamos a falar nisto, mas a factura é grande e ainda não sei se serei capaz de a pagar. Ela tem umas teorias quaisquer, sobre cartas fechadas. Eu por mim prefiro pensar que se não der certo, então paciência, nessa altura logo se vê.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Casa com vista para o Bairro

Um dia levou-me a ver a casa nova com vista para o Bairro. Era um jantar de inauguração, eu, ele e o novo colega de apartamento, e acabou por ser um jantar de revelações. Sem palavras, porque não era preciso. Porque só havia um quarto e uma cama e nas prateleiras havia fotografias dos dois abraçados numa qualquer viagem pela Europa. Nunca lhe perguntei porque escolheu aquela maneira de me contar e nem isso é o mais importante. Saí de lá furiosa, não com ele, mas comigo, que nunca me dei ao trabalho de pensar no que havia no outro lado, no que era aquele meu amigo de há anos, sempre tão misterioso com a sua vida, de quem eu gostava tanto e que, no entanto, me tinha assim passado ao lado. Lembro-me muitas vezes deste jantar quando me dá para filosofar sobre a amizade e sobre a quantidade de coisas que não sabemos sobre os amigos mesmo quando achamos que os conhecemos tão bem. Deste amigo gosto muito. Gosto de todos, mas com este, sempre directo e certeiro nas críticas, tenho uma ligação especial. Mesmo que ele não saiba disso. E hoje deu-me para as saudades.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

O fim da aventura

Quando a conheci não gostei dela. São aquelas manias tontas, ideias pré-concebidas sobre as morenas com madeixas, sempre enfiadas no cabeleireiro, e roupas acabadinhas de sair da Loja das Meias. Acho até que lhe respondi com o meu ar mais frio e distante ao olá matinal, no meio da sala cheia de gente onde todos eramos desconhecidos uns dos outros. Depois, ainda hoje não sei bem como, bastou uma semana para nos tornarmos inseparáveis. E passámos juntas um ano quase inesquecível. Um ano em que vivemos tudo o que não tinhamos vivido antes, ela porque cresceu muito cedo, eu porque cresci muito tarde. Apanhámos bebedeiras, passámos cinco noites por semana enfiadas na Kapital ou no Plateau, fizémos amigos que se perderam algures pelo caminho. Ela ficou e eu também. Nessa altura não ia dormir sem lhe telefonar, ou ela a mim, como duas adolescentes da secundária. Aturou-me os amores perdidos, as manhãs de ressaca, os dias de S. Valetim sem namorado. E quando era preciso, lá estava. Sempre.

Não sei quando deixou de estar. Pouco a pouco, os telefonemas foram rareando e de repente já era só eu que os fazia. Deixou de vir a minha casa e já era só eu que ia à dela. Deixámos de ir aos mesmos sítios, as noites na Kapital e no Plateau acabaram-se e já não era eu que estava lá para lhe aturar as bebedeiras, nem era ela que me ouvia os lamentos dos amores perdidos.

Sinto a falta dela. Perder uma amiga é pior do que perder um amor. A um namorado que se foi embora não telefonamos porque não nos apetece. A uma amiga perdida não telefonamos porque ela já não está lá.

domingo, fevereiro 12, 2006

A duas vozes

ELE

"Existe outra pessoa". Atirou-me a frase assim, sem mais nem menos e disse que queria o divórcio. Os miudos no quarto ao lado a dormir e nós ali, estendidos na cama, lado a lado, quilómetros a separar-nos, um terreno minado que eu não queria pisar e os olhos dela fixos no tecto, sem me tocarem como antes faziam. Dizem que nos minutos antes da morte a vida nos passa pelos olhos e e minha ali estava, toda, sempre com ela, apesar de lá ter entrado apenas há uns anos. Devo ter morrido durante uns minutos, até que a vida me voltou e fiz o que nunca tinha feito, porque a única coisa que me ocorreu foi deixar-lhe na cara a marca dos meus medos todos. Não sei se algum dia me vai perdoar. Nem sei que alguma dia lhe perdoo eu os dias que se seguiram, em que andei perdido, sem saber por que caminhos seguir, incapaz de me encarar a mim, de encarar os miudos, de encarar os amigos que tinham no olhar a pena por mim, o abandonado, o substituído. O amor e a perda confundiram-se com a raiva e com os medos e caminhei horas e horas pela casa, incapaz de fazer fosse o que fosse a não ser pensar em quem era o outro. Nunca me disse. Voltou dois dias depois, para fazer as malas, e já não voltou a sair. Nessa noite, e em todas as que se seguiram, dormi agarrado à sua mão, incapaz de a soltar, incapaz de a ver sair de novo. Não voltámos a falar sobre o "outro". A vida continuou. Afinal amamo-nos, e isso é que conta, não é?


ELA

Contei-lhe quase sem querer, porque já não aguentava mentir-lhe, esconder as mensagens do telemóvel e dar sumiço às facturas detalhadas da TMN. Contei-lhe por puro egoísmo, porque não sabia ainda o que queria. Depois, desatou-se o novelo e começou a pior noite da minha vida. Dizem que o amor transfigura as pessoas, por isso não foi ele que deixou no meu rosto as marcas dos seus dedos. Foi outro qualquer, um homem que não era o pai dos meus filhos, apesar de ter as mesmas feições. Também não foi ele que me pôs fora de casa numa noite gelada e depois me perseguiu pelas ruas durante dias seguidos. Não foi ele, tenho a certeza. Mas foi ele quem me abraçou quando voltei para fazer as malas e me disse que me ama mais do que a vida. Foi ele quem me disse que só ali é que sou feliz. E eu acreditei. Não me fez mais perguntas. Também não lhe disse mais nada. O "outro", como ele lhe chama, à falta de um nome, morreu. A vida continuou e nós continuamos a amar-nos como antes. Espero...

Receita

Passei anos a deprimir-me e a irritar-me. Farta dos cor-de-rosa das montras, dos ursos de peluche pirosos, das caixas de chocolate cheias de coraçõezinhos imbecies. Farta dos gajos das lojas a quererem ganhar o mês à conta do dia dos namorados. Farta da festa que se faz à volta de um dia que é só mais um dia igualzinho aos outros todos, porque o amor tem é de ser comemorado todos os dias, todas as horas e todos os minutos, mesmo que isso não signifique estar a pensar sempre nele e queira apenas dizer que o amor tem é de se viver e mais nada. Vivê-lo enquanto ele aqui está.

Continuo a achar que o dia dos namorados é uma patetice (alguém sabe por que raio meteram o São Valentim ao barulho?), mas já que anda toda a gente a antecipá-lo, não resisto a invocar novamente o grande Vinicius, que escreveu sobre estas coisas como ninguém.

Assim sendo, vamos lá aprender o que é preciso...

...Para viver um grande amor

Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... - não tem nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro - seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.
Para viver um grande amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fieldade - para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito - peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista - muito mais, muito mais que na modista! - para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs - comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica, e gostosa, farofinha, para o seu grande amor?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto - pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente - e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia - para viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que - que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva escura e desvairada não se souber achar a bem-amada - para viver um grande amor.


Vinicius de Moraes

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Cinco manias

Não é fácil, MaDi. Fiz o levantamento e, afinal, são muito mais do que cinco. Concluída a selecção (escolhi as menos susceptíveis de mancharem a minha reputação), aqui vai:
1. Mania de só ler um livro de cada vez (mesmo que me apeteça imenso começar já a ler o último do David Lodge ou do Perez Reverte);
2. Mania de seguir sempre pelos mesmos caminhos quando ando de carro (mesmo que sejam os mais longos);
3. Mania de deixar para o fim as coisas melhores (comidinha, estão a ver? e comidinha pode ser muita coisa... ok, adiante);
4. Mania de ter os CD todos arrumadinhos por ordem alfabética (esta é mesmo só mania);
5. Mania de achar que o amor pode durar para sempre e que nada é inevitável (esta tem um alvo...)

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Decisão

Ao fim de exactamente 654 SMS, resolveram-se a vencer os 300 quilómetros que os separam e marcaram um almoço. Nada de muito comprometedor. Só um encontro, à luz do dia, num sítio neutro, rodeados de desconhecidos. Como eles próprios, aliás. Ela leva na mão um livro de Vinícius, o poeta que escreveu que o amor é eterno enquanto dura.

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Ciberlove

Os blogs têm destas coisas. Ela criou um e fez dele o seu caderno diário. Ele descobriu-o e, no meio das frases encriptadas, das entrelinhas e das conversas da treta, apaixonou-se. Ela não. Porque já se decepcionou muitas vezes e não é mulher que se apaixone por uma sombra...

Um dia ele mandou-lhe um e-mail. Depois uma fotografia. E das entrelinhas dos posts passaram para as SMS. Sem nunca se terem encontrado, com 300 quilómeros pelo meio, descobriram que tinham amigos comuns, que gostavam das mesmas coisas, que até falavam uma linguagem parecida. A linguagem das SMS, entenda-se, que para mais é preciso ter coragem, e às vezes mete medo a expectativa do que pode estar do outro lado das palavras escritas.

Nunca se encontraram. Nunca falaram do assunto a ninguém. Mas andam a contar os minutos que faltam até ao dia em que deitarão abaixo os 300 quilómetros. E enfrentarão o medo de esta ser apenas mais uma banalíssima história de ciberlove, daquelas que têm os dias contados quando saem das telas dos computadores. E das palavras das SMS.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006